quarta-feira, 3 de abril de 2024

O garfo, a vontade, o gato, a ação...

 Indo da lavanderia à cozinha ela tropeçou. Seria um tombo bobo, não fosse o garfo trinchante que estava na sua mão e que não tinha ajudado a limpar o filtro da máquina de lavar roupas. Ele poderia ter se fincado em outro lugar, mas achou uma boa ideia acertar a jugular. Ou será a carótida?

Vendo o chão ficar vermelho do sangue ela pensava se deveria pedir socorro ou apenas desfrutar da gostosa sensação de relaxamento e dos pensamentos que passavam pela sua cabeça.

Pensou em chamar seu gato, mas a lembrança do anúncio chocado e chocante, feito pelo seu ex-amante,  de que gatos comem seus donos mortos a fez rever a ideia...

Pensou também em levantar rapidamente, como sempre fez, mas a situação tinha um quê de interessante e, afinal, pra que a pressa? Ela não tinha resolvido ser mais lenta nesta etapa da vida? Estava no terceiro trintênio e resolvida a dar mais ouvido às suas necessidades. Não tem filho pequeno pra cuidar, as vasilhas do gato estão cheias, a caixa de areia limpa...  

Lembrando do gato e do alerta chocante - que ela não deu a menor bola quando recebeu - começou a pensar que talvez fosse melhor se levantar de uma vez!

Mas lembrar do ex-amante puxou um fio de pensamento para seguir. E como diz Turguêniev em um ensaio em que compara Hamlet e Dom Quixote (e os considera incomparáveis): "Neste ponto nos aparece o aspecto trágico da vida humana tantas vezes notado: para agir é preciso vontade, para agir é preciso pensamento; mas pensamento e vontade separam-se e, a cada dia, separam-se mais ainda... " e aí cita Shakespeare e seu Hamlet, que diz: "E assim a cor nativa da vontade, desbota, sob a palidez do pensamento"...

Ela poderia ter lembrado deste texto, afinal, foi lido recentemente, mas a lembrança do ex-amante se impõe e nas lembranças e pensamentos sobre a tentativa de reaproximação feita por ela,  também sua vontade de levantar empalidece.  Teria sido bom se eles tivessem se entendido? Mas será que ela queria mesmo? E se sobrasse mais do que a agradável companhia a necessidade de cuidar? Ela já havia decidido que estava agora em uma nova fase: mais livre, mais solta, mais egoísta, aprendendo cada dia mais a dizer não...

E a sua libido, definitivamente, estava comprometida. Vontade bem pequena desta ação também. Melhor continuar na liberdade de dormir com seu gato - mesmo que ele a coma depois da morte! - de ler, comer, ver bobagens ou não no Youtube da tv do quarto...

Ops! Um pensamento ativa a sua vontade; sua filha vai sofrer muito se a encontrar morta e comida pelo gato! Mais uma  vez a delícia dos pensamentos a toma. Que maravilha é o amor! Mas a possibilidade de ferir tanto a uma pessoa tão amada e tão merecedora de amor lhe traz de volta a vontade. 

A autora aqui percebe que a força deste amor tão real atrapalha muito sua capacidade como ficcionista! É preciso deixar para outra hora a continuidade deste texto, depois que afastar a visão tão doce que compromete seu distanciamento.