terça-feira, 21 de novembro de 2023

Minha vida interessante. A música.

 Minha infância foi marcada por música. Minha mãe tocava piano e cantava. Árias de ópera. Lindamente. E também canções italianas, hinos protestantes - minha família materna era presbiteriana. Naquela época não se usava o termo "evangélico" - melodias clássicas da música brasileira, que também naquela época não era conhecida como MPB.

Minha tia avó Esther, muito querida, era uma exímia pianista e tocava o "Tico Tico no Fubá" com a agilidade e talento necessários.

Meu pai cantava! Acompanhando as mulheres tão musicais. Sempre o ouvi brincando que não tinha talento nenhum, mas sua voz grave e alegre nunca me pareceu desafinada. Me lembro dele cantando "Ô leva eu, que eu também quero ir..." no carro, nas ladeiras da avenida Pompéia, e eu chorando, muito triste e irritada porque me parecia que  aquele era um pedido e que Deus o ouviria... desde aquele tempo, ainda alguns anos antes da morte da minha mãe, eu tinha muito medo de que meu pai morresse e me  deixasse. 

Nunca houve nenhuma pressão ou empenho para que meu irmão e eu seguissemos estes dons musicais. Apesar de termos piano em casa não me lembro de ter sido incentivada a tentar tocá-lo. Era um espaço da minha mãe, e da minha tia, quando nos visitava. Não era um brinquedo a ser explorado por crianças. 

No início da adolescência, acho que a meu pedido mesmo, ganhei um violão e tive algumas aulas. Acredito que tenha se comprovado aí a minha ausência de jeito, já que não fui além de "Pena Verde"...

Um pouco mais tarde, já depois de ter perdido minha mãe, resolvi fazer aulas de ballet clássico. Mesmo sem acreditar que tivesse qualquer talento, ou facilidades físicas, fiz ballet por quase oito anos e a música clássica, nos anos mais avançados tocada ao piano, teve um papel importante no meu prazer em estar lá transpirando, dolorida e as vezes sangrando. As amizades e o desafio também ajudaram bastante.

Por muitos anos ouvi muita música popular, fui a shows - me lembro de muitos no Anhembi e não consigo nem entender como eu chegava até lá! - tive artistas preferidos em várias fases e ouvia um mesmo disco - E eram mesmo discos rodando na vitrola - por dias e horas a fio. Taiguara, Silvinha Teles, Chico Buarque, Oswaldo Montenegro, Beto Guedes e todo o Clube da Esquina.... e um tanto de Beatles e Paul McCartney...  

Quando finalmente saí da casa do meu pai e fui morar em um delicioso apartamento com uma amiga - minha comadre hoje - a vitrola era o eletrodoméstico mais importante e ativo. Ouvíamos música o tempo todo e mais uma vez tive o prazer de ouvir uma soprano cantando na minha casa. Minha comadre arrasa!

Depois tive fases de música caipira, muita música infantil  quando meus filhos eram pequenos, um tantinho de rock com filho baixista, e uma curtição de fossa danada ouvindo muito Marisa Monte e Adriana Calcanhoto.

E daí parece que houve um longo período de vácuo musical. Troquei a música pela notícia, o toca CDs pelo rádio e acho que nem me dei conta disso...

Tenho sido salva recentemente por uma filho extremamente musical que mora comigo - e ouve música na caixinha amplificadora, o que faz com que eu compartilhe - e pelos concertos da Orquestra Sinfônica da USP! Que prazer tem me dado ir ao Camargo Guarnieri, aqui ao lado, e ouvir música clássica, orquestra com voz negra marcando a beleza da diversidade, orquestra com viola caipira me emocionando até as lágrimas. 

Aos poucos tenho resgatado este enorme prazer. Um show de MPB convidada pelo filho, uma mudança de estação de rádio, uma exploração pelo Spotify...

Sem dúvida, com música, a vida fica mais interessante. 

sábado, 7 de outubro de 2023

Mais uma mãe querida

 Ela era a amiga mais próxima da minha mãe. E quando eu fiquei sozinha ela me acolheu. Devo muito a essa querida tia: o gosto pela leitura foi incentivado por ela, que e emprestava livros e mais livros que eu lia com disposição. Com ela aprendi a fazer um risoto com arroz agulhinha, açafrão e queijo, que ficava amarelinho e delicioso. Nunca mais tentei fazê-lo. Foi ela que garantiu que eu tivesse uma festa de quinze anos e fez meu vestido e os enfeites de decoração. Era um vestido longo, azul turquesa, com um cinto largo com margaridas bordadas. Infelizmente, ao que parece, ninguém garantiu uma foto para a recordação... 

Um dos sonhos mais impressionantes logo após a morte da minha mãe foi dela e comigo. Acordei já pensando que queria ver a tia Carminha. Ela morava em um apartamento nas Perdizes e eu ia vê-la com alguma frequência. Neste dia, sem combinar, fui até lá e ao abrir a porta para mim ela começou a chorar, emocionada. Me contou que naquela noite havia sonhado com a minha mãe. Ela atendia a porta de seu apartamento e minha mãe estava lá, lhe entregando um enorme buquê de rosas! Não sei se esta lembrança é real ou se foi criada pela minha imaginação. Gosto de acreditar que foi uma das mensagens enviadas pela minha mãe, garantindo que me amava.

Deste apartamento também tenho uma lembrança assustadora e angustiante. Era em um andar alto - 14º ou 16º - e um dia meu pai foi me buscar, já no fim da tarde, ou a noite. Acabou a luz e, consequentemente, o elevador deixou de funcionar. Naquele tempo geradores não eram comuns. A escada era toda com paredes de vidro,  o que garantia a entrada de alguma luz assim como uma bela e/ou apavorante vista do exterior. Para mim foi assustador. Talvez venha daí meu medo de altura. Ou eu já tinha e foi reforçado. Sem nenhuma chance de escapar, meu pai queria ir embora e não permitiu que eu não fosse com ele, desci todos aqueles andares olhando para o abismo... Tive pesadelos com altura por muitos anos. Até a vida adulta. Quando meus filhos eram pequenos sonhava que estava andando em andaimes de construção e me forçava a isso porque era a única forma de escapar de alguma coisa...

Em férias, fui passar alguns dias com eles no Guarujá. Tão férias!!!! Ficava na praia o tempo que quisesse. Voltava para o apartamento e minha tia me esperava  sempre bem humorada, alegre, com uma comida deliciosa pronta e dicas de beleza: casca de melancia no rosto para aplacar o calor do bronzeamento é a única que me lembro. Pelo carinho dela ter me esperado com as cascas geladinhas... 

Penso que foi ela a única pessoa que leu os meus diários. E os devolveu com carinho, cuidado, guardando meus segredos e sendo sempre solidária com as minhas dores. 

Quando fiz vinte e um anos recebi do meu tio, marido desta querida, um lindo ramalhete de flores, entregue pela floricultura, coisa cara e rara naquela época eu acho, com um cartão que mesmo sem ter guardado nunca me esqueci: "Bem-vinda à maioridade legal. Parabéns". Ele era advogado e aquele gesto de atenção e carinho me surpreendeu e emociona até hoje.  Agora penso que deveria ter lido esta mensagem como um aviso de que eu poderia tocar a minha vida livremente a partir daquela data... mas, idade não significa maturidade...

Era delicioso ouvir as histórias de viagens do casal. Eles adoravam viajar e faziam isso com bastante frequência. Viagens longas, à países distantes: Marrocos, Egito... E ela me contava das viagens mostrando as lembranças que trazia destes lugares.

Eles tinham uma filha. Mais velha do que eu e já casada nesta época. Eu não me lembro de tê-la encontrado pessoalmente, mas me lembro das fotos que minha tia me mostrava: do s eu casamento, de viagens: Chique, bonita, elegante, distante. Ela já tinha um filho, o neto adorado da minha tia, e depois teve meninos gêmeos - acho até que o primeiro caso de gêmeos que ouvi falar assim próximos. 

Não sei quando eu me distanciei ou eles se distanciaram, mas perdi completamente o contato com esta família tão importante para mim. Não sei o que aconteceu. Por muitos anos lembrei o número do telefone deles e me lembrava do endereço e do apartamento, mas nunca voltei lá ou voltei a vê-los. Por que será? Nunca saberei.


domingo, 24 de setembro de 2023

Varais

Imagino que daqui a alguns anos ninguém vá saber mais o que são varais! E eu tenho tantas boas lembranças de varais de roupa.

Roupa lavada me leva sempre a lembranças do passado: o quarador que existia no enorme quintal da casa da minha tia. Os varais das casas em que morei... lembranças soltas, curtas, cada uma de um lugar: um sapo que dormia no tanque da minha casa de infância e que provavelmente me deixou com um grande medo de sapos que persiste até hoje; o varal da minha deliciosa casinha no Jardim Esther e a terrível pancada que levei na testa passando por baixo dos varais e das roupas penduradas e levantando com tudo em uma porta de armário que eu mesma deixei aberta; a terrível e nauseante lembrança do cheiro de amaciante - absoluta novidade da época - misturado com um horrível cheiro de carniça, efeito do "Mil Gatos", veneno que matou a ratazana que se escondia na minha máquina de lavar! URGH!!!!!

Ufa, pronto... voltando as boas lembranças...

A mais antiga e forte é a da Dona Wanda. Xará da minha mãe, a dona Wanda era uma portuguesa que morava na casa exatamente em frente a minha. Uma casa simples e antiga, construída no alto de um barranco (provavelmente nem tão alto e nem tão barranco, mas é a memória de uma menina de cinco, seis anos) onde moravam dona Wanda, seu marido e dois filhos: Manoel e Maurício, este último o meu primeiro amor...

Dona Wanda era em muita coisa o oposto da minha mãe: usava roupas simples, era nada vaidosa - talvez não tivesse oportunidade de ser - e eu me lembro dela no tanque, lavando roupas incansavelmente. Tenho a impressão de que eu me sentava por perto e a observava, querendo ser como ela no futuro, ou ter como ela aquela grande habilidade e disposição. Não  sei se de fato isto aconteceu, se fiquei lá observando. Não me lembro de conversar com ela, então talvez tenha sido só uma imagem, que gravei para sempre. Um momento tão importante em que estive na casa do menino que eu sonhava que seria meu marido no futuro.

Não me lembro mais do Maurício e nem do que aconteceu com esta família. Não me lembro quando mudaram ou quando a casa foi vendida, ou quem a ocupou depois. Ficou na minha lembrança apenas a imagem da dona Wanda e a admiração e ternura que senti por ela naquele momento e que perdurou por toda a minha vida.


segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Lacunas

Por que em minha cabeça parecem ter desaparecido momentos, períodos, as vezes até anos?

Me surpreendo com a ausência de lembranças de natais, por exemplo. Não me lembro das comemorações natalinas. Pelo menos não das que aconteceram entre a morte da minha mãe e o nascimento do meu primeiro filho.

Lembro dos natais da infância, ou de algumas coisas deles. Na casa da minha tia Zélia, com primos e tios, avô e avó. Aguardando o momento da chegada do presente mais importante. Uma boneca da Estrela! A que anda! A que fala! A que beija! A boneca dos sonhos de qualquer menina daquela época.

Mas não me lembro de todos os anos. E também não me lembro de outras festas. Mas a lembrança é no geral boa. Forte, alegre. E com a minha mãe por perto.

Depois um longo período em branco. Um almoço na casa da minha tia, talvez? Uma ideia vaga de ter viajado em alguma destas festas? Mas nada de concreto. Nenhuma ideia de "como foi bom o natal de 1980!". Também nada de "como foi ruim o natal de 1983". Alguma coisa como se eu fosse de uma família judia ou muçulmana que simplesmente não comemora o natal. Será isto? Será que nós não comemorávamos mesmo? E aí como seria?

04.janeiro.2016



A mentira da pobreza e seus reflexos

As vezes eu guardo um título. Só o título. Foi o que aconteceu com este. E agora ao ler eu comecei a rir pensando: O que você quis dizer com este título empolado, cara pálida?!

Não tinha nem ideia! Mas aí me lembrei e achei que se este texto não sair logo e não ficar perto do "Peso dos Nomes", ele não fará sentido algum!

Esta lembrança ficou aqui porque muita gente riu das minhas referências à minha pobreza. Como pobre?! Nascida em berço de prata. Pai funcionário público de nível superior; mãe normalista, cantora, pianista autodidata, dona de casa por opção e possibilidade.

Estudei em colégio particular a vida inteira - ops! a vida inteira não: cumpri com o esperado. bem preparada pela escola particular fiz faculdade pública, claro... - morei em casa própria a maior parte da vida, poucas vezes me afligi por não ter como pagar minhas contas e mesmo nestes momentos de apuro, em que eu mesma já era responsável pela minha vida financeira, nunca faltou absolutamente nada de fundamental na minha casa e eu sempre soube que apertando a necessidade teria a quem recorrer. As vezes sofri mais por orgulho do que por necessidade.

Então, por que na constituição do "patinho feio" o termo "pobre" aparece tantas vezes? Pela culpa socialista? Afinal, já que desigualdade social é muito ruim, ter dinheiro também é, então, melhor ser pobre. Mas se fosse isso eu não teria culpa. Se repeti para me convencer e liberar, não deu certo. A culpa continuou comigo por muitos anos. E ainda é bem confusa a minha relação de como se pode ou não ganhar dinheiro. Em geral acho e defendo que dinheiro justo vem de muito suor, de perseverança, de paciência, de alguma subordinação, de muito aprendizado, Se for ganho com prazer, tanto melhor. Mas se houver mais prazer que sacrifício, natural que não seja muito alto o ganho.

Da mesma forma, melhor que seja salário. A paga pelo trabalho de sol a sol, por um tempo determinado. Trabalhou, ganhou. Não trabalhou, não ganhou.

Mas a sensação de ser a "pobre", estava sempre muito próxima do ser a "coitadinha". E como ser acusada de me colocar neste lugar me ofendeu tantas vezes! E ofendeu porque não fui acusada quando me coloquei de forma quase mentirosa como "pobre", mas sim quando declarei sentimentos, me queixei por me sentir aviltada, desrespeitada, infeliz ou magoada.

Depois de anos de terapia parece que começo a entender um pouco melhor esta posição. A minha dificuldade em colocar minha indignação de forma mais dura, mais firme, cobrando e exigindo respeito e não chorando pela falta dele. Fui acusada de me fazer de vítima por não ter coragem nunca de atacar e enquadrar os algozes. Eles não deixam de ser algozes porque eu os amo ou admiro. Que trabalho difícil que é aprender a estabelecer limites. Não permitir que me tratem com injustiça e ainda invertam fazendo de mim a culpada por ser atacada. Como é difícil não me responsabilizar pelas coisas que não são minha responsabilidade.

15.janeiro.2016



Quarenta e oito horas

Quarenta e oito horas foi o tempo necessário para eu pensar em escrever a respeito. O gosto das lágrimas continua impregnado na minha garganta, no meu nariz. Ainda não passou de todo a raiva. A raiva pelo descontrole. A raiva pelos desaforos. A raiva do esquecimento, que não me permite avaliar de fato o que foi aquele cataclisma. A raiva por saber que muito mais do que quarenta e oito horas eu contive raivas por muitos anos e agora, como uma raiz de árvore que rompe a terra, ela sai... nem sempre para o lado certo, sem cuidado, sem controle, machucando flores que foram cuidadas por anos.

22.fevereiro, 2023


Cinquenta e sete

Se aproxima o meu aniversário. Cinquenta e sete anos. Estranho como parece que agora o tempo desembestou e corre...
Fiquei pensando que, como um livro bom, agora peguei o gosto! Começo a aprender a desfrutar. Prestar atenção nos detalhes. Não dar tanta importância aos parágrafos chatos e me deleitar com os bons! Querendo que dure...

13.junho.2016

O canário

Eu nunca me lembro dos meus sonhos. Chego até a pensar que não sonho. As vezes eu me lembro ao acordar, mas quando penso em contar pra alguém a lembrança já foi embora!
Mas este sonho marcou. Não só me lembrava perfeitamente dele, com detalhes, como queria muito contar, achando que ele não fazia muito sentido.
Sonhei que estava na minha casa de infância. Um sobrado grande onde cresci e onde passei por momentos muitos felizes (a entrada na escola, as brincadeiras de criança, a entrada na faculdade, as tardes de conversa com amigos queridos da escola, a visão do quintal vizinho, onde em uma festa aconteceu meu primeiro beijo) e outros muito tristes (a morte da minha mãe, os desentendimentos com meu pai, o grande susto com o Pedro, quando já não morava mais lá).
Coincidentemente - ou não - esta casa também é o cenário de sonhos que tinha com frequência na adolescência: o sonho assustador da minha fuga de um perseguidor desconhecido de quem eu corria pela rua até entrar em casa pela lateral, quase aliviada e segura, mas que ao subir a escada do quintal para a cozinha eu tropeçava e me transformava em presa fácil do algoz. Acordava em pânico, sem identificar o desconhecido. Também sonhava com meus frequentes pesadelos de enfrentamento de altura. Precisando sair da casa pela janela do meu quarto, que dá para a mesma descida lateral e deve ter uns seis metros de altura.
Mas voltando ao sonho do canário. Sonhei que estava na casa. Tenho uma idade não muito clara e também não sei muito bem o que estava fazendo lá, mas me lembro de repente com um grande susto, do canário. Um canário que eu me lembro existir preso em uma gaiola na área de serviço, lá embaixo. Um canário que era minha obrigação cuidar. Mas que me esqueci e não cuidei. Corro para o lugar da gaiola e lá está ele: morto. Morto por negligencia, por esquecimento, por irresponsabilidade. Minha. Minha irresponsabilidade.

Texto escrito em junho de 2016. O sonho aconteceu no começo de 2013 e graças a ele resolvi voltar a fazer terapia. Graças a terapia e a análise deste sonho no final do ano fui para a Europa e no retorno mudei de casa! 2013 foi um ano inesquecível!

A aritmética da vida

Todo 13 de maio faço as contas! Minha mãe teria feito neste ano, 92 anos! Seria bárbaro se ela estivesse viva! Penso se ela teria ensinado os netos a tocar piano, se eu teria aprendido a fazer a sopa de couve-flor, ou o strogonofe de camarão, o brioche ou até o doce de leite tão simples, cortado na pedra da pia. Penso se os natais teriam sido em casa, se eu me acharia mais bonita, se meu irmão teria mudado de faculdade, se meu pai seria mais feliz.
Agora estamos chegando no dia 3 de agosto. Vão se completar 44 anos da sua morte. Uma vida sem ela.

01.agosto.2016

Sobre o medo

" Ramon encontrava uma cidade cansada, ou melhor, desencantada, assediada pela escassez e ansiosa por regressar a uma normalidade destruída pela guerra e pelos sonhos revolucionários. Era como se as pessoas só aspirassem levar uma vida comum e banal, às vezes mesmo ao preço infame da rendição" (Leonardo Padura - O Homem que amava os cachorros)

- Vou guardar este texto, acho que em algum momento eu quero escrever sobre isto.

- Você vai escrever sobre São Paulo, mãe?

- Não. Quero escrever sobre o medo. Sobre o cansaço da luta. Sobre o desejo de retorno à normalidade, por pior que ela possa ser.

03.janeiro.2017

Dias de Abandono

Sintam-se mal! Porque eu me sinto mal por ir pouco lá e porque eu me sinto mal por ver meu pai chorando a cada vez que vou lá.

E eu acho que eles vão todos para o inferno porque são muito egoístas.

E agora ouvindo esta mensagem vejo claramente como estas coisas me desgastam e cansam. Problema deles se não vão! Problema deles se se sentem bem ou mal! Quando eu cobrei para que eles me ajudassem? Por que me sentir mal porque não ajudam?

E esta noite (27 de outubro) eu sonhei que eu morava em um apartamento diferente e pequeno. Parece que eu morava sozinha. Aí fui abrir a porta de entrada do apartamento e a Virgínia estava lá, encostadinha na parede, esperando que alguém abrisse a porta. Ela estava muito abatida e confusa, mas ainda andava. Entrou rápido, para tomar banho e se aquecer.

Acordei assustada e fiquei me sentindo mal com tanto abandono.

27.outubro.2016

Carnaval difícil... notícia de que uma amiga muito próxima teve um AVC... visita tranquilizadora. Está se recuperando muito bem e tenho certeza de que logo estará completamente boa. Mas o susto, a constatação do risco, a evidência gritante de que já não somos jovens e de que é necessário ter mais cuidado com a saúde. Logo a seguir, notícia de que uma jovem de não mais que trinta anos, que trabalhou comigo e esbanjava saúde, estava em coma. Levou uma descarga elétrica ao encostar uma escada de alumínio em um fio desencapado. Socorro demorado, paradas cardíacas, UTI, morte cerebral e em dois dias ela se foi.

Em meio a estas notícias, filhos em três cantos diferentes, aproveitando o carnaval, o sol e dando sempre menos notícias do que eu gostaria. Uma indisposição geral me incomoda, com uma dor no joelho que não cede apesar de ser resultado de um tombo de quase três semanas atrás. Fico pulando da minha casa para a casa de uma amiga que viaja e que tem cachorro e plantas para cuidar. Estranho a casa, a cama (ela se preocupa que o cão não durma sozinho), sinto pena de passear com ele sempre menos do que ele gostaria e muito mais do que meu joelho permite...

Me fazem companhia uma nova série espanhola de viajantes no tempo (Ministério do Tempo, uma série espanhola), alguns encontros com amigas queridas e mais um livro da Elena Ferrante: Dias de Abandono. Li vários outros livro dela. Gostei de todos, todos me tocaram. Mas este revolveu meu passado. Reabriu feridas antigas, mal cicatrizadas. Me colocou questões que só terão função e utilidade se eu conseguir trazer pra hoje.

13.fevereiro.2018

Ideias soltas?

 O dia surpreendeu a todos. Limpo. Um céu claro, de primavera. Com cheiro de terra molhada. A chuva deve ter sido forte. Limpou tantos dias de pó, de mosquitos, de lágrimas, de angustia.

Eu me  vi pensando no que ocuparia aquele vazio que estava sempre tão presente. Eu. Meus sentimentos, minha interioridade, meu sentir. Meu amor e minhas dores. Minha alegria e minha potência.

O apartamento podia vir a ser um refugio sem custo. Podia até se transformar em um quarto e sala. Com cozinha, escritório e uma ampla sala de jantar. Mas só para quando eu os quiser abrir.

E ficou o gato. Que representação tem este bichinho tão enigmático? Tão doce.

Seria esta a forma de perpetuar aquele sobrenome que vai se extinguindo? Estamos acabando. Restarão alguns adotantes sem vinculo real. Ou serão estes os vinculos que realmente importam?

Um pseudonimo... tão engraçado pensar nisso antes de ser capaz de escrever qualquer coisa que necessite de assinatura.

Como as prioridades se estabelecem. Ou não. Quando a sua mensagem do whatsapp é para ser vista, lida, ouvida... ou se é pra ser deixada pra depois. Quem sabe enquanto você faz o almoço, sua mensagem pode ser vista?

10.outubro.2020

É feio sentir inveja, não é? Mas é quase inevitável.

O que me cabe?

Tudo. Por muito tempo foi assim que eu senti e pensei. Que a mim cabiam todas as responsabilidades, especialmente a responsabilidade de cuidar e garantir a vida e a felicidade dos outros.

20.janeiro de 2017

E SE...

 Meu esforço de viver o presente - tentando praticar mindfulness, fazendo um esforço para caminhar todos os dias, tentando parar  com as listas do futuro e buscando prazer e compreensão de que estas são apenas atividades do presente - parece amparado pelo desejo de muitos outroas. Claro que estamos em um momento que convida a isso, afinal, qual é a garantia que temos de futuro com uma pandemia matadora em curso, com um governo ameaçador fazendo campanha para mais quatro anos de poder e encontrando apoio para isto?...

E a idade também ajuda, ou atrapalha... É difícil quando a gente deixa de se reconhecer nas fotos. Um espanto a cada clique! Mesmo os cliques sendo possíveis o tempo todo! Pior ainda? Não me acostumo e me surpreendo a todo momento com o fato de a cada dia ser mais parecida com as minhas tias do que com a minha filha...

A perda de pessoas importantes - meu pai se foi velhinho, com 93 anos, o que embora torne a perda menos revoltante, não a faz menor - faz com que a gente suba, ou desça, na linha de probabilidade. Meu irmão e eu subimos com  a morte do meu pai! E perceber que dos meus amigos(as) mais próximos só três tem mães vivas (pai eu era a última) também é um tapa na cara, afinal, tenho muitos amigos(as) próximos(as)!  

E aí eu me vejo perguntando... e se este ronquinho no pulmão for uma coisa mais séria? E se minha hora também não estiver longe? E se meus esquecimentos não forem apenas falta de atenção e excesso de tarefas? E se eu não for refratária a Alzheimer como pretendia ser? E se a minha cabeça resolver dar trabalho para os meus filhos e filha? E se eles, especialmente ela, não se convencer de que a vida continua sem mim e me perder não é a pior coisa do mundo????

Por que eu não me acostumo com a liberdade que tenho agora? Ninguém depende de mim! E eu não consigo. Sinto saudades... 

Escrito em 2022 



Depoimento

Aquele estava sendo um ano especialmente difícil. Problemas no trabalho são sempre muito pesados para quem gosta muito e se dedica muito àquilo que faz. E era o que estava acontecendo: o local que eu trabalhava e o Programa que eu coordenava na Universidade, estavam sendo extintos. Levei comigo um monte de equipamentos – com a história de dez anos de trabalho salva nos discos rígidos – e uma equipe de funcionários e de estagiários, para um lugar inóspito, onde ninguém sabia ou queria saber quem éramos, o que fazíamos e o que deveríamos passar a fazer.

De outro lado, em casa, a preocupação com minha sogra (na verdade a mãe do ex-marido, mas pessoa próxima e querida e avó amorosa dos meus três filhos) que enfrentava um agressivo câncer de intestino e alternava momentos de extrema confiança na reabilitação com momentos de muita debilidade, e aflição...

Neste quadro minha filha adolescente teve sua primeira menstruação. E como mãe moderna que sou achei que era o momento dela ter sua primeira consulta ginecológica.

Naquele momento eu andava um tanto desacertada com ginecologistas. Meu ginecologista na época andava tendo o estranho comportamento de não me examinar. Há dois anos não fazia nem exame ginecológico e nem de mamas. Conversava, ouvia queixas – quase sempre inexistentes uma vez que eu sempre tive menstruação regular, nada de cólicas, engravidei quando quis, tive gravidezes tranquilas e cesáreas com fácil recuperação, amamentei meus filhos com facilidade e prazer... – pedia exames e pronto.

Achei que para minha filha  seria mais fácil ter a primeira consulta com uma mulher e por isso procurei uma nova médica no meu convenio. Encontrei uma médica cadastrada que eu já tinha ido anos atrás e achei uma boa referência que ela continuasse conveniada e com consultório no mesmo lugar. Marquei consulta para nós duas: mãe e filha.

Passei novamente por exames que não fazia há algum tempo e, sem dar muita importância, chamei a atenção da médica para um pequeno caroço em minha mama esquerda, no quadrante superior esquerdo, próximo a axila. Fácil de sentir. Eu não havia dado importância e nem me preocupado porque o médico anterior já havia me dito que meu parênquima mamário era denso e por isso era normal a sensação de nódulos...

Ela não pareceu achar assim tão normal: pediu uma mamografia e um ultrassom de mama, junto com os outros exames de praxe, habituais para quem tem um bom convênio, o que é meu caso felizmente.

Ao fazer os exames, se eu fosse uma pessoa preocupada já teria motivos para ficar alerta: fiz e refiz várias imagens, tanto do ultrassom como da mamografia. Mesmo assim, não me assustei ou pensei em nada de terrível. Estava mais preocupada que a minha filha não achasse ruim os exames que estava fazendo... e fiquei feliz lendo os laudos de que seu útero estava em posição normal e que os ovários eram saudáveis e que nada estava errado... com ela.

Quando voltei à minha médica, a leitura dela dos exames foi preocupante e saí de lá com o telefone de um mastologista que atendia meu convenio e um pedido para dois exames especializados: uma mamotomia (que ela já explicou que faria a retirada de uma microcalcificação na mama direita) e uma punção aspirativa com agulha fina no nódulo da mama esquerda.

Fiz os exames em um laboratório especializado e com médicos visivelmente experientes. A mamotomia, apesar do aparato assustador do maquinário de exame foi muito tranquila e rápida. Mesmo o procedimento feito por enfermeira depois do exame: forte pressão do local da sucção e enfaixamento das mamas, não foi dolorido ou assustador.

A punção foi bem mais desagradável e dolorida e a feição do médico não me pareceu tranquilizadora...

Fui ao mastologista já com todos os exames prontos. Ele me tranquilizou muito ao mesmo tempo em que foi muito honesto e claro. Os exames apontavam o nódulo da mama esquerda como maligno (células atípicas), o que ele disse que também poderia ser um dano sofrido pelas células pela própria invasão do exame. Mas, pelo exame clínico ele também considerava provável que o nódulo fosse mesmo um carcinoma (acho que ele não usou este termo) e sugeria a cirurgia de retirada para breve avisando que seria feita uma quadrantectomia (retirada do quadrante atingido pelo nódulo) e, se necessário, retirada do gânglio sentinela, na axila.

Não tive muito tempo para me assustar. Ele me convenceu plenamente de que nada estaria tão ruim, que a ação rápida seria eficiente e que eu ficaria muito bem. Achamos um dia possível para ambos – em programação de fim de ano de mãe isto não é fácil porque tinha primeira comunhão de uma, final de campeonato de futebol de outro, apresentação de ballet no outro fim de semana, apresentação da banda do outro filho na outra semana... -  e marcamos para uma sexta-feira de novembro... novembro de 2006.

A cirurgia foi rápida, simples e eficiente. Quando acordei não sentia dor e só me incomodava um pouco com o dreno. Mesmo com o curativo dava pra ver que meu seio (que é pequeno) continuava lá, o que sem dúvida me tranquilizou.

O médico não demorou muito para vir ao quarto e confirmou que o nódulo de fato era maligno, que havia sido feita a quadrantectomia e a retirada da glândula sentinela. Que estava tudo bem e ficaria tudo bem e que eu ficaria no hospital aquela noite, só por causa do dreno, que ele viria retirar na manhã seguinte. A amiga que estava comigo no quarto comenta até hoje que a minha reação foi a que ela esperaria para alguém que estivesse recebendo um relatório de retirada de amigdalas. Fiquei o tempo todo absolutamente tranquila e certa de que tudo ia bem...

Fui para casa no dia seguinte e tirei uma licença de 12 dias que foi bastante tranquila. Voltei ao médico para fazer curativos, a cicatrização foi muito boa e sem sustos ou reações e a falha no seio não chegou a ser assustadora. Depois de cicatrizado, já no ano seguinte, fui encaminhada para radioterapia, como disse meu médico, só por precaução... para garantir que nenhuma célula danificada resistisse e se reproduzisse.

Paralelamente, minha sogra lutava contra o câncer internada em um hospital de ponta de São Paulo. Mesmo indo vê-la com frequência e acompanhando os tratamentos a que ela estava sendo submetida, uma hora dando a impressão de grande melhora e vitória e em outra apenas provocando um grande abatimento físico e emocional, eu não me senti em nenhum momento na mesma situação e não temi enfrentar o mesmo quadro.

Os quase dois meses em que fiz radioterapia foram bastante tranquilos. Durante este período adotei inclusive uma atitude saudável que era a de ir de ônibus até um determinado ponto e depois caminhar cerca de 3 quilometros até o hospital onde fazia a radio.

Conforme a situação de saúde da minha sogra se agravava eu tinha ainda menos vontade ou condições de falar a respeito do que eu havia tido e até de pensar sobre isto. Estava mais preocupada com a perda que claramente se aproximava da minha família e da dor em ver uma pessoa ainda jovem (65 anos), que sempre foi muito alegre e ativa definhando... Uma mulher grande e forte que tinha entre os seus grandes prazeres a comida, não conseguindo mais fazer mesmo que uma pequena refeição... Cercada de todos os cuidados possíveis, médicos, fisioterapeutas, enfermeiros... Em alguns momentos ela parecia cansada inclusive de todo este aparato e daquilo que parecia até uma responsabilidade dela: a cura, que ela se sentia culpada por não responder como esperavam.

Mesmo com tudo isto ela foi presente em meu tratamento, recomendando que eu fizesse tudo certinho, que não me descuidasse, que desse importância à necessidade do meu corpo de repouso, que não me desgastasse. Acho que a mensagem dela era: “Não se atreva a morrer e deixar meus netos!” e do jeito que foi possível ela cuidou de mim para que eu me recuperasse bem e atendesse seu pedido/ordem.

Meu tratamento continuou ainda por alguns anos, tomando tamoxifeno, anti-hormônio bem chatinho que antecipou minha menopausa, ajudou para que eu engordasse uns bons quilos desnecessários e deixou minha sensibilidade agudíssima. Em casa todos estavam em picos e baixas de hormônios e picos e baixas de disposição, alegria e tristeza... Eu na menopausa e meus filhos na adolescência.

Em abril de 2007 vivenciamos logo no primeiro dia do mês a triste experiência de ter adolescentes de 13 anos acompanhando o sepultamento da amiguinha de classe, da mesma idade, que se despedia vencida por um câncer no cérebro. No mesmo mês, no dia 21, nos despedimos da avó querida e lutadora que finalmente se autorizou a nos deixar. Neste último mês ela ficou, por sua escolha, em um Hospital com uma ala de tratamento paliativo para pacientes terminais e o apoio psicológico, o suporte para que ela visse os filhos assistidos e ela cuidada para que tivesse o maior conforto possível, mas também a “autorização” para não querer levar aquela vida me pareceu fundamental para que ela tivesse um final mais tranquilo.

Eu estou muito bem. Consegui até fazer, finalmente, um esforcinho bem sucedido pra emagrecer! Falta agora ser disciplinada e voltar a prática de exercícios. Sei que é fundamental e me comprometo agora e aqui com esta próxima atitude.

 
Texto escrito em 1.5.2012 a pedido da Heloísa.

Minha vida interessante

Começar com um domingo de sol e as "minhas crianças" por perto é sempre muito bom. E tem a diversão da cozinha. Como eu gosto destes trabalhos domésticos! Me sinto em estado de meditação divertida entre minhas panelas! Decidir o que fazer, verificar se os ingredientes estão em ordem, e, finalmente, me envolver no preparo! Delícia!!!! Nesse domingo uma festa do porco! Arroz, feijão, escarola refogada e salada mista, sem nada pesado, para compensar o prato principal: lombo e costela de porco temperados na véspera, sem nenhuma parcimônia... farofa com calabresa e bacon... Sobremesa: Pudim de leite condensado. Ficou bom. Para mim faltando um pouco de sal em tudo, mas sal se complementa no prato! kkkk... e o Francisco, que prefere comidas saudáveis e ainda evita açúcar (tirando sorvete e chocolate, que ele nunca rejeita!), se divertiu e completou a refeição com bananas. E depois do almoço, de estar com o coração recarregado de amor e energia, deu até para adiantar a arrumação da cozinha, que estava muito fácil. Depois, só preguiça. E um bom livro! Estou lendo "Memorial de Maria Moura", apaixonada!!!!

Uma segunda-feira diferente! Com pouca coisa para fazer em casa - a cozinha já estava praticamente arrumada - dei só uma ajeitada geral, afinal, não consigo sair sem pelo menos uma vistoriazinha, e lá fui para uma reunião no Cepeusp, com o pessoal do @Butantã + Caminhável! Ai, como essa gente me faz bem!!!! Remédios, Maykell, Marcos, Luis Dantas abrilhantando a manhã... Suzana passando rapidinho... cada um deles me encanta. Me esclarecem coisas que rodam na cabeça sem compreensão, acrescentam ideias, distribuem generosidade. Com eles eu sempre aprendo. E me emociono com o acolhimento; com o compartilhamento do café, da tapioca, das ideias e dos sentimentos. E com eles percebi as coisas que tem pesado para mim no funcionamento da Rede. Uma delas, o fato de não sentir mais as reuniões como um espaço de fortalecimento de cada um e muito mais um espaço de propaganda de cada grupo, foi desmentida a noite, em uma reunião virtual que resgatou em mim a crença de que ainda vale a pena estar na Rede e contribuir para que as reuniões aconteçam. Reunião gostosa, tranquila, com as pessoas interessadas em se ouvir, em participar, em ajudar da forma possível. Reunião para compreender, para juntar forças, para renovar energias. Reunião com um lindo depoimento no final, sobre a importância e o poder da arte e sobre os caminhos que a possibilidade de estar junto abrem.



Perdas. E ganhos.

 Meus pais morreram em agosto. Ela no dia três. Em 1972. Eu tinha acabado de completar treze anos. Foi um mês de chuva, de céu cinza carregado de nuvens. Um mês de dias tristes. No rádio tocava Águas de março. E minhas lágrimas formavam as águas de agosto. Na TV a novela das oito era Selva de Pedra. Triste também, embora eu só me lembre disso: que era triste, que tocava Rock and roll lullaby e que eu amava o ator João Paulo Adour. Foi um tempo de muita solidão. Um tempo de muitas leituras. De sonhos estranhos e consoladores. De paixões platônicas. Foi um tempo de medo e insegurança. 

Quase cinquenta anos depois meu pai morreu no dia 18 de agosto de 2021. Em um ano em que enfrentamos uma pandemia e um governo autoritário e ensandecido. Longe dos 13 anos da primeira grande perda, agora me acostumo ao fato de ser uma senhora. Legalmente uma idosa. Este agosto foi bem mais solar. Apesar de alguns dias bem frios, teve pouca chuva e eu não estive sozinha, mesmo com todas as restrições ao convívio social. Não tive sonhos consoladores, fiz leituras mais preguiçosas e tento olhar mais pra dentro de mim mesma. 


Sobre mães e férias e preenchimento de vazios...

 O almoço na casa da minha tia saia cedo. As 11h a mesa estava posta e nós acordávamos para almoçar. Uma comida sempre deliciosa. Quase me lembro do gosto. Aquela casa cheia de primas, de aconchego, de sabores e perfumes me encantava. A cidade com o céu mais cheio de estrelas que já vi. A descoberta do desejo. A delícia de ouvir a rádio local. Os bailes, as fofocas, confidências...

Sinto saudades da viagem, algumas vezes feita de trem. Que delícia. Parando em cada estação. Me deu uma noção bastante esquisita da localização das cidades. parece que a ordem era trocada... na minha cabeça ficou marcada uma ordem que provavelmente eu construí, com as referências que tive: Dois Córregos, Jaú, Itirapina... o trevo de Brotas! A estação. Até hoje tão bonita. Pena que não param mais trens lá.

E como era bom tudo aquilo... tantas primas para admirar... a linda, a rebelde, a boa amiga, a independente, a séria... e naquela casa de mulheres um pai sério e ao mesmo tempo terno. Talvez não fosse realmente assim, mas na minha cabeça aquela casa e aquela família eram a imagem da mansidão, da harmonia, das coisas corretas. Tudo era como deveria ser.

Minha tia era uma presença de mãe magnífica! Ela é até hoje. Eu sempre admirei mães, mesmo antes de perder a minha. A Tia Terezinha foi uma presença tão importante neste momento em que um grande buraco se abriu na minha vida. Uma das minhas mães, com quem aprendi, a quem procurei copiar, a quem sou profundamente grata. 

Cicatrizes

 Tempo, tempo, tempo, tempo...

Nunca me importei com eventuais cicatrizes em meu corpo. Achava natural que algumas marcas ficassem, em geral de eventos importantes. Minha boa cicatrização também ajudava. Uma marca escura na batata da perna direita me lembra até hoje que escapamentos de moto queimam. E que a minha cicatrização de queimaduras não é tão boa. Mas, mais que isso me lembra de uma época maravilhosa em que eu até andava de moto!

Tenho pensado muito em cicatrizes. O que elas me recordam? Quanto me limitam? Hoje fiquei pensando, enquanto fazia yoga, em quais conclusões um médico tiraria sobre a minha vida em uma necrópsia. Macabro? Não foi essa a ideia. Achei até engraçado. 

Se for um médico ou médica atento, logo deduzirá que eu gostava de cozinhar. E que era um pouco estabanada na cozinha. Talvez pelo desejo de fazer sempre muitas coisas ao mesmo tempo. Minhas mãos e braços tem várias marcas: forno quente que fechou na altura do cotovelo, marcas de grelha de forno, queimadura de caramelo (esta é muito irritante porque é pequena e feia! E quantos pudins eu já fiz na vida? Fazendo um calculo rápido devo ter feito mais de 400! Então queimar a mão caramelando forma no 401º é o fim!)...







Lu e Maró

 Por que a gente se perde de pessoas que amamos? Sem nenhum desentendimento, sem briga, sem grandes mudanças geográficas... 

Continuamos quase vizinhas. Mantivemos os mesmos números de telefone por anos e anos. Nossas vidas nem sequer tomaram rumos inesperados ou surpreendentes. Mas nos perdemos. Mesmo sem esquecer. Mesmo sem deixar de querer bem, nos perdemos. 

Um ou dois encontros em trinta anos. Um enterro, um encontro casual... 

Uma notícia assustadora. É agora ou nunca mais! E assim, timidamente nos reencontramos.

Com a minha velha teoria de que sou eu que sempre falho ou falto, cheguei procurando desculpas, justificativas, sem coragem de perguntar sobre o que se passa, só querendo justificar minha falta no passado, talvez até prevenir de uma futura falta também no futuro...

Não era necessário. Não eram solicitadas justificativas. Afinal, eu também não precisava delas para voltar a me sentir próxima, para nos reencontrarmos, para saber que alguns elos tem vínculos tão fortes que se refazem sem necessidade de grandes cirurgias. Não são necessários pedidos de perdão, desculpas, explicações. Basta a presença. E, assim, nos reencontramos.

Quinhentos anos de vida para colocarmos em dia. Muitas lembranças para resgatarmos. Algumas absolutamente iguais e complementares, outras tão diferentes que parecem inventadas por um lado ou pelo outro.

Conversas que se estendem por horas. E poderiam continuar por outras tantas horas... 

O que temos ainda por aqui? Quantas horas serão possíveis? Quanto conseguiremos acertar o passo de nossas conversas? Quanto eu ainda poderei aprender? 

Por que os chamados e a permanência? O que ainda te mantém aqui? Quais são os seus medos? Quais são os meus medos?

O que aprendemos com as aflições que passamos? 

E assim tive a oportunidade de me despedir. Talvez tenham faltado encontros. Algumas perguntas eu não tive coragem de fazer. Algumas histórias vividas nós não lembramos. 

Que possam cair as lágrimas e que permaneçam também as risadas. Saudades da amiga mais antiga. 


Tempo, tempo, tempo, tempo

Já faz algum tempo que eu penso sobre o tempo... e desenvolvo teorias a respeito. Provavelmente sem muita possibilidade de comprovação, mas teorias que aquietam meu coração. Para mim o tempo se mantem o tempo todo. Quando lembramos, revisitamos aquele tempo que está lá, existente, com os personagens que o compuseram . E assim permanecemos vivos pelo menos pelo tempo em que somos lembrados. Mas eu nunca tinha relacionado o meu interesse por este tema às minhas intermináveis listas. Listas de coisas passadas e de questões futuras. Livros lidos, amores vividos/perdidos, filmes vistos, tarefas a fazer... Em todas elas a relação com o tempo é clara. Nas que são planejadas para o futuro muitas vezes o complemento da lista é a distribuição das tarefas em uma agenda, raramente cumprida. A leitura de O som e a Fúria me colocou muito neste lugar de pensamento de como o livro me afetou e, entre outras coisas, se colocou esta questão do tempo. A inexistência de futuro nesta história de alguma forma me levou a pensar sobre as minhas listas e como as tarefas a serem cumpridas me dão de certa forma uma crença no porvir. (Escrevi isso antes do Tudo em todo lugar ao mesmo tempo, tá?) E descobrir que minha filha usa meu nome em uma senha, ou que talvez um dia eu venha a ter uma neta chamada Martina, que não deixa de ser uma derivação do meu próprio nome, me emociona e me garante viva. E viva para novos desafios, com novas ideias e novos propósitos, com novos erros, escolhas, acertos. Não será isso uma forma de continuar? Não é isso o viver uma nova vida? E na sociedade do metaverso poderei ter outros gêneros, poderei novamente ser criança e distrair meus filhos da falta que podem sentir de mim, mesmo que sem ser esquecida. Meu pai continua em minhas lembranças todos os dias. Sinto sua falta e sua presença.

Pendências

Cinco anos atrás, pouco depois de ter me aposentado, promovi na minha casa uma série de encontros durante uma semana inteira. Sem temas ou pautas definidas, foram encontros para conversar, para apresentar pessoas, para promover reflexão e propiciar ideias! E, especialmente, para passarmos juntos momentos agradáveis. Foi o que aconteceu. Foi uma semana intensa de encontros alegres e agradáveis. Terminei a semana exausta, feliz e cheia de ideias! Louca para dar continuidade à minha habilidade de unir pessoas e otimista de que conseguiria encontrar, em algum momento, uma forma até de ganhar algum dinheiro com isso e complementar a minha renda de aposentada. 
Cinco anos se passaram e eu não retomei os encontros. Está certo que houve a pandemia. E a pandemia é sempre uma resposta justa para muitas coisas! Adiamentos, desistências, mudanças de rumo, depressão...Aconteceu também a morte do meu pai e, acho que pela primeira vez depois de muitas perdas, me permiti viver um tempo de luto. Tivemos quatro anos de governo Bolsonaro e isto talvez justifique tanto quanto a depressão, o desânimo... 
Cinco anos se passaram e agora me encontro em outro momento: Completei dez anos de terapia; estou participando do planejamento do casamento da minha filha, e me surpreendendo com quanto isto me emociona; tenho agora perto de mim um garotinho marrento que me chama de vovó e que vez por outra vem bagunçar minha casa, desafiar minhas regras e derrubá-las com a maior facilidade, me surpreender com pequenas e grandes descobertas, encher meu coração de ternura e garantir que continuamos presentes. 
Mas, por mais desculpas e sentidos que eu encontre na protelação desta e de outras ações, não consigo deixar de pensar em por que tenho tantas pendências? Tenho uma pasta de pendências cheia de papéis que me lembram coisas que eu gostaria de fazer ou que em algum momento eu me comprometi a fazer e nunca fiz. Algumas destas coisas, talvez até todas elas, podem vir a não ser feitas nunca. Na maior parte dos casos não tem ninguém me cobrando para fazê-las. Na totalidade não acontecerá nada de grave se eu não as realizar nunca. Então, porque eu não retiro da pasta? Ou porque eu não me coloco em ação?
O que me segura?