Aquele estava
sendo um ano especialmente difícil. Problemas no trabalho são sempre muito
pesados para quem gosta muito e se dedica muito àquilo que faz. E era o que
estava acontecendo: o local que eu trabalhava e o Programa que eu coordenava na
Universidade, estavam sendo extintos. Levei comigo um monte de equipamentos –
com a história de dez anos de trabalho salva nos discos rígidos – e uma equipe
de funcionários e de estagiários, para um lugar inóspito, onde ninguém sabia ou
queria saber quem éramos, o que fazíamos e o que deveríamos passar a fazer.
De outro
lado, em casa, a preocupação com minha sogra (na verdade a mãe do ex-marido,
mas pessoa próxima e querida e avó amorosa dos meus três filhos) que enfrentava
um agressivo câncer de intestino e alternava momentos de extrema confiança na
reabilitação com momentos de muita debilidade, e aflição...
Neste quadro
minha filha adolescente teve sua primeira menstruação. E como mãe moderna que
sou achei que era o momento dela ter sua primeira consulta ginecológica.
Naquele
momento eu andava um tanto desacertada com ginecologistas. Meu ginecologista na
época andava tendo o estranho comportamento de não me examinar. Há dois anos
não fazia nem exame ginecológico e nem de mamas. Conversava, ouvia queixas –
quase sempre inexistentes uma vez que eu sempre tive menstruação regular, nada
de cólicas, engravidei quando quis, tive gravidezes tranquilas e cesáreas com
fácil recuperação, amamentei meus filhos com facilidade e prazer... – pedia
exames e pronto.
Achei que
para minha filha seria mais fácil ter a
primeira consulta com uma mulher e por isso procurei uma nova médica no meu
convenio. Encontrei uma médica cadastrada que eu já tinha ido anos atrás e
achei uma boa referência que ela continuasse conveniada e com consultório no
mesmo lugar. Marquei consulta para nós duas: mãe e filha.
Passei
novamente por exames que não fazia há algum tempo e, sem dar muita importância,
chamei a atenção da médica para um pequeno caroço em minha mama esquerda, no
quadrante superior esquerdo, próximo a axila. Fácil de sentir. Eu não havia
dado importância e nem me preocupado porque o médico anterior já havia me dito
que meu parênquima mamário era denso e por isso era normal a sensação de
nódulos...
Ela não
pareceu achar assim tão normal: pediu uma mamografia e um ultrassom de mama,
junto com os outros exames de praxe, habituais para quem tem um bom convênio, o
que é meu caso felizmente.
Ao fazer os
exames, se eu fosse uma pessoa preocupada já teria motivos para ficar alerta:
fiz e refiz várias imagens, tanto do ultrassom como da mamografia. Mesmo assim,
não me assustei ou pensei em nada de terrível. Estava mais preocupada que a minha filha não achasse ruim os exames que estava fazendo... e fiquei feliz
lendo os laudos de que seu útero estava em posição normal e que os ovários eram
saudáveis e que nada estava errado... com ela.
Quando voltei
à minha médica, a leitura dela dos exames foi preocupante e saí de lá com o
telefone de um mastologista que atendia meu convenio e um pedido para dois
exames especializados: uma mamotomia (que ela já explicou que faria a retirada
de uma microcalcificação na mama direita) e uma punção aspirativa com agulha
fina no nódulo da mama esquerda.
Fiz os exames
em um laboratório especializado e com médicos visivelmente experientes. A
mamotomia, apesar do aparato assustador do maquinário de exame foi muito
tranquila e rápida. Mesmo o procedimento feito por enfermeira depois do exame:
forte pressão do local da sucção e enfaixamento das mamas, não foi dolorido ou
assustador.
A punção foi
bem mais desagradável e dolorida e a feição do médico não me pareceu
tranquilizadora...
Fui ao
mastologista já com todos os exames prontos. Ele me tranquilizou muito ao mesmo
tempo em que foi muito honesto e claro. Os exames apontavam o nódulo da mama
esquerda como maligno (células atípicas), o que ele disse que também poderia
ser um dano sofrido pelas células pela própria invasão do exame. Mas, pelo
exame clínico ele também considerava provável que o nódulo fosse mesmo um
carcinoma (acho que ele não usou este termo) e sugeria a cirurgia de retirada
para breve avisando que seria feita uma quadrantectomia (retirada do quadrante
atingido pelo nódulo) e, se necessário, retirada do gânglio sentinela, na
axila.
Não tive
muito tempo para me assustar. Ele me convenceu plenamente de que nada estaria
tão ruim, que a ação rápida seria eficiente e que eu ficaria muito bem. Achamos
um dia possível para ambos – em programação de fim de ano de mãe isto não é
fácil porque tinha primeira comunhão de uma, final de campeonato de futebol de
outro, apresentação de ballet no outro fim de semana, apresentação da banda do
outro filho na outra semana... - e
marcamos para uma sexta-feira de novembro... novembro de 2006.
A cirurgia
foi rápida, simples e eficiente. Quando acordei não sentia dor e só me
incomodava um pouco com o dreno. Mesmo com o curativo dava pra ver que meu seio
(que é pequeno) continuava lá, o que sem dúvida me tranquilizou.
O médico não
demorou muito para vir ao quarto e confirmou que o nódulo de fato era maligno,
que havia sido feita a quadrantectomia e a retirada da glândula sentinela. Que
estava tudo bem e ficaria tudo bem e que eu ficaria no hospital aquela noite,
só por causa do dreno, que ele viria retirar na manhã seguinte. A amiga que
estava comigo no quarto comenta até hoje que a minha reação foi a que ela
esperaria para alguém que estivesse recebendo um relatório de retirada de
amigdalas. Fiquei o tempo todo absolutamente tranquila e certa de que tudo ia
bem...
Fui para casa
no dia seguinte e tirei uma licença de 12 dias que foi bastante tranquila.
Voltei ao médico para fazer curativos, a cicatrização foi muito boa e sem
sustos ou reações e a falha no seio não chegou a ser assustadora. Depois de cicatrizado,
já no ano seguinte, fui encaminhada para radioterapia, como disse meu médico,
só por precaução... para garantir que nenhuma célula danificada resistisse e se
reproduzisse.
Paralelamente,
minha sogra lutava contra o câncer internada em um hospital de ponta de São
Paulo. Mesmo indo vê-la com frequência e acompanhando os tratamentos a que ela
estava sendo submetida, uma hora dando a impressão de grande melhora e vitória
e em outra apenas provocando um grande abatimento físico e emocional, eu não me
senti em nenhum momento na mesma situação e não temi enfrentar o mesmo quadro.
Os quase dois
meses em que fiz radioterapia foram bastante tranquilos. Durante este período
adotei inclusive uma atitude saudável que era a de ir de ônibus até um
determinado ponto e depois caminhar cerca de 3 quilometros até o hospital onde
fazia a radio.
Conforme a
situação de saúde da minha sogra se agravava eu tinha ainda menos vontade ou
condições de falar a respeito do que eu havia tido e até de pensar sobre isto.
Estava mais preocupada com a perda que claramente se aproximava da minha
família e da dor em ver uma pessoa ainda jovem (65 anos), que sempre foi muito
alegre e ativa definhando... Uma mulher grande e forte que tinha entre os seus
grandes prazeres a comida, não conseguindo mais fazer mesmo que uma pequena
refeição... Cercada de todos os cuidados possíveis, médicos, fisioterapeutas,
enfermeiros... Em alguns momentos ela parecia cansada inclusive de todo este
aparato e daquilo que parecia até uma responsabilidade dela: a cura, que ela se
sentia culpada por não responder como esperavam.
Mesmo com
tudo isto ela foi presente em meu tratamento, recomendando que eu fizesse tudo
certinho, que não me descuidasse, que desse importância à necessidade do meu
corpo de repouso, que não me desgastasse. Acho que a mensagem dela era: “Não se
atreva a morrer e deixar meus netos!” e do jeito que foi possível ela cuidou de
mim para que eu me recuperasse bem e atendesse seu pedido/ordem.
Meu
tratamento continuou ainda por alguns anos, tomando tamoxifeno, anti-hormônio
bem chatinho que antecipou minha menopausa, ajudou para que eu engordasse uns
bons quilos desnecessários e deixou minha sensibilidade agudíssima. Em casa todos estavam em picos e baixas de hormônios e picos e baixas de disposição,
alegria e tristeza... Eu na menopausa e meus filhos na adolescência.
Em abril de
2007 vivenciamos logo no primeiro dia do mês a triste experiência de ter
adolescentes de 13 anos acompanhando o sepultamento da amiguinha de classe, da
mesma idade, que se despedia vencida por um câncer no cérebro. No mesmo mês, no
dia 21, nos despedimos da avó querida e lutadora que finalmente se autorizou a
nos deixar. Neste último mês ela ficou, por sua escolha, em um Hospital com uma
ala de tratamento paliativo para pacientes terminais e o apoio psicológico, o
suporte para que ela visse os filhos assistidos e ela cuidada para que tivesse
o maior conforto possível, mas também a “autorização” para não querer levar
aquela vida me pareceu fundamental para que ela tivesse um final mais
tranquilo.
Eu estou
muito bem. Consegui até fazer, finalmente, um esforcinho bem sucedido pra
emagrecer! Falta agora ser disciplinada e voltar a prática de exercícios. Sei
que é fundamental e me comprometo agora e aqui com esta próxima atitude.
Texto escrito em 1.5.2012 a pedido da Heloísa.